Todo novo entusiasta dos chás, ao iniciar qualquer forma de estudo sobre a bebida, é prontamente apresentado a uma verdade esclarecedora, a saber, a de que todo chá vem da mesma planta, a Camellia sinensis. A despeito de haver um certo debate a respeito da aplicação do termo “chá” para infusões de outras espécies botânicas, eu, no contexto deste artigo, irei ao encontro de tal definição. Por outro lado, a pesar da roupagem pretensamente esclarecedora que carrega, este é um axioma que precisa ser colocado em perspectiva, pois ele, sozinho, mais esconde do que ilumina.
Isto porque, atualmente, apenas na China, são cultivados literalmente milhares de cultivares desta espécie e há um intenso trabalho de desenvolvimento de novas variedades em curso em diversos centros de pesquisa em todo o país. Como se depreende das fotos abaixo, estes cultivares podem apresentar características físicas extremamente distintas, fazendo de cada um uma Camellia sinensis particular.
Cultivar é um termo análogo a varietal, largamente utilizado no mundo dos vinhos, e surgiu da junção das palavras “Cultivated” e “Variety”, implicando uma importante dose de interferência humana (variedades cultivadas) no processo de surgimento ou seleção de tais tipos de Camellia sinensis.
Com exceção de algumas poucas variedades da planta do chá existentes em regiões remotas no extremo sul de Yunnan, norte da Tailândia e nordeste da índia, provavelmente exemplares singulares de tipos naturalmente surgidos (também chamados de selvagens), toda Camellia sinensis utilizada para a produção de chás é um cultivar, uma variedade cultivada. Um bom trabalho de catalogação de variedades selvagens e cultivares de Yunnan foi compilado por Yu Fulian em Zhong Guo Gu Cha Shu (publicado pela Editora de Ciência e Tecnologia de Yunnan e disponível para consulta em nossa casa de chás).
Outro termo caro ao cultivo de chás (assim como de outras espécies botânicas) é “nutrição”. Nutrição refere-se, em linhas gerais, à composição química de uma planta – ou, mais especificamente, da parte dela utilizada para a produção de determinado produto. As substâncias químicas presentes em uma folha de chá (ou sua nutrição), obviamente, são o insumo básico para a produção dos aromas, sabores, cores e corpo de um chá.
A meu ver, a simples apreciação das fotos que ilustram este artigo seria suficiente para entender como distintos cultivares possuem nutrições distintas. As distintas tonalidades, tamanhos e formatos não apenas das folhas, mas das plantas como um todo, são indicadores de que dentro delas reações metabólicas distintas estão ocorrendo e, em consequência, as diferentes substâncias estão se concentrado em maiores ou menores graus. De forma a ilustrar a questão com alguns números, listo, a seguir, a concentração de três importantes substâncias e grupos de substâncias encontrados em folhas de alguns cultivares bastante utilizados atualmente na China, substâncias estas de grande relevância para a definição do perfil sensorial dos chás a partir delas produzidos*:
Dong Ting Zhong (utilizado na produção do verde Bi Luo Chun): 3,7% de cafeína, 4,1% aminoácidos e 21,6% de polifenóis
Jiu Keng (utilizado na produção do verde Gunpowder): 4,1% de cafeína, 3,4% de aminoácidos e 20,9% de polifenóis
Qi Men Zhong (utilizado na produção do preto Qi Men): 4% de cafeína, 3,5% de aminoácido e 20,7% de polifenóis
Fu Ding Da Bai Cha (utilizado na produção dos brancos Bai Mu Dan, Bai Hao Yin Zheng e Shou Mei): 3,4% de cafeína, 4,3% de aminoácidos e 16,2% de polifenóis
An Ji Bai Cha (utilizado na produção do verde homônimo): 2,8% de cafeína, 6,2% de aminoácidos, 10,7% de polifenóis
Meng Hai Da Ye Zhong (utilizado na produção de alguns pu’ers): 4,1% de cafeína, 2,3% de aminoácidos e 32,8% de polifenóis
A partir do momento em que percebemos quão diferentes dois cultivares de Camellis sinensis podem ser – e que deduzimos que a nutrição das folhas de cada um destes cultivares deverá ser consideravelmente distinta – começamos a entender o por quê a planta (ou, mais precisamente, o desenvolvimento e aperfeiçoamento de um determinado cultivar de tal planta) é um elemento chave para se produzir um chá com determinadas características. Ignorar isso, intencionalmente ou não, é algo que empobrece a criação, retirando uma importante dimensão da mesma e tornando a elaboração de determinadas características sensoriais em uma infusão de folhas de Camellia sinensis, uma loteria, não um jogo pensado. Em outras palavras, o chá que tem seu perfil sensorial pensado a partir do desenvolvimento e adaptação de um determinado cultivar de Camellia sinensis deve ser colocado em um patamar distinto daquele em que se encontram chás cujo processo de produção ignora ou toma como dada esta dimensão. Patamar aqui chamado de chá especial – ou specialty tea, em inglês.
Distintas variedades de Camellia sinensis vêm sendo desenvolvidas na China há séculos. A conquista dos Reinos Ba e Shu pelos imperadores Qin em 221 aC, ao mesmo tempo em que unifica pela primeira vez a China, dando origem ao período das dinastias imperiais, é o primeiro capítulo de um processo que marcará o deslocamento do principal eixo de cultivo e produção de chás para nas províncias do leste (Jiangsu, Zhejiang, Anhui, Jiangxi e Fujian) e, com isso, a necessidade de se transplantar e promover adaptações à planta do Chá para novos terroirs, até então não tocados pela Camellia sinensis. Pode-se, com segurança, remontar o início da prática chinesa de desenvolvimento de cultivares à este período histórico. Ou seja, há ao menos 2 séculos há um trabalho ininterrupto de observação deste elemento na cultura chinesa do chá e na produção de chás chineses que hoje se traduz em dezenas de programas de graduação, mestrado e doutorado focados em diferentes aspectos da produção de chás e no desenvolvimento de novos cultivares.
No ocidente há um interesse valado de alguns setores ligados à produção e ao comércio de chás em não se dar importância à dimensão dos cultivares como elemento determinante na produção e diferenciação de chás especiais, pois, assim, qualquer chá específico (entenda-se-se um Long Jing, um Da Hong Pao, um Mo Gan Huang Ya ou um pu’er) poderia ser produzido a partir de qualquer variedade de Camellia sinensis sem necessidade de se aderir a elementos caracterizadores mais rígidos, como a utilização de uma variedade da planta do chá desenvolvida com o intuito de dar características distintas ao chá a partir dela produzido. Isso explica, também, porque a verdade que inicia este artigo é propagada em maior intensidade que o universo complexo que ela esconde. Em artigos próximos falarei dos outros elementos que considero haver uma necessidade de domínio e estudo, por parte de um mestre de chá, para que este possa chamar seu produto de “chá especial”. Mais especificamente, falaremos de terroir e técnica (cultivo, colheita e processamento).
*CHEN, Zongmao; YANG, Yajun (Ed.). Zhongguo Cha Ye Cidian. Shanghai: Shanghai Wenhua Chubanshe, 2013